terça-feira, 23 de outubro de 2018

Uma crônica de ninguém sobre nada


Falar de educação no Brasil deixou de ser “chover no molhado”; agora, é soprar no seco. Isso porque não se trata mais de repetir as mesmas estratégias ou de se obter os mesmo resultados. A verdade atual é insistir em acreditar. É sobre crer que Rubem Braga é ninguém e que fala sobre nada. Não existem o padeiro, o taxista, o pavão, a borboleta, o tuim e o Zig. Ninguém fez nada.
Um das campeãs de aparições nas escolas brasileiras, em aulas de português, a fadigada foto crônica foi imposta à turma de 9º ano – e sua heterogeneidade etária, dos 14 aos 18 anos. Na lousa, as orientações, o passo a passo. Muitas dúvidas, perguntas repetitivas, olhares desinteressados e a fatídica retórica: “Pra que isso, professora?”
– Para contextualizar! Tomar posse das vivências de Braga!
Silêncio. Expressões de “nada entendi” e “ainda não sei pra quê?”. Leituras em grupos, individuais, pausadas para efetuar buscas nos dicionários, checar redes sociais.
– O que é um tuim, professora?
– Um pequeno pássaro!
– Zig é uma pessoa?
– Não! É o cão de Rubem Braga.
– O padeiro fazia os pães e entregava também? – Essa exigiu mais tempo da professora!
Ao final da aula, os alunos ainda não estavam convencidos da necessidade da atividade. A professora também já não mais cria em ninguém. Até que uma luz ao fim do túnel surgiu:
Fessora, posso fazer um rap da crônica do cara? – ela se levantou sorrindo, descaradamente, queria mesmo mostrar a satisfação, que estava contente! E não conteve a ansiedade! Seria sua realização – que nem era verdadeiramente esperada.
– Se liga, fessora!
“Um passeio no zoo parece inofensivo,
Mas a treta na cabeça é um trampo intensivo!
Papo reto, sem neurose, olha a vacilação:
O amor tem as asas coloridas do pavão!
Não tem luxo, não tem dor,
Vagabundo também ama, dá licença, seu doutor!”
A turma aplaudiu e vibrou com o colega! A professora descruzou os braços e acompanhou.
– Muito legal, Enzo! Mas as cores do pavão estão nas penas da calda. É só trocar!
– Qual é, fessora! Rap não tem correção! É improviso! Se não cola, a mente apaga.
– Você precisa anotar suas composições! Pode gravá-las, algum dia!
– Esse bagulho de escrever estraga a rima, ela passa do ponto, fessora!
O sinal indicou que a aula acabara. Enzo e quase todos os seus colegas cataram seus materiais e bateram em retirada, rapidamente.
Enquanto a professora organizava os livros e cadernos e muitas folhas em sua bolsa, uma última aluna se aproxima e pede para tirar uma “selfie” com ela.
– Ah! Já sei! Você escolheu a “Aula de inglês”!?
– O quê, prof? – a menina não conhecia a crônica de Braga que tinha o protagonismo de uma professora.
– “Is this na elephant?” – a professor sorriu – A pergunta que a professora de inglês fez, na crônica. Não leu esta? A foto não é para sua foto crônica?
– Não, prof! É pra postar no Instagram.
– Ah! Sim... Tudo bem! Deixa eu arrumar meu cabelo...
Após alguns cliques, correções de postura, alguns filtros testados, até encontrar a melhor imagem, pronto!
– Que legenda você colocou? – perguntou despretensiosamente a professora.
– “Tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras – sejam quais forem.” – disse a garota, já quase à porta da sala.
– Você leu! Sorrindo, respondeu para a menina.
– Não, prof. Peguei na internet. – respondeu a garota olhando inocentemente para sua professora – curte lá depois, prof. – e saiu.
O oásis era uma miragem. Ao menos foi isso que a docente acreditou.
– Ninguém fez nada. Será que sabem quem é Rubem Braga? Duvido!
Ela saiu, com o celular em mãos, já acessando seu “Insta” – iria curtir a foto e tecer um comentário carinhoso; tão aprazível quanto Zig livrando-se de uma ninhada de gatinhos.